Bienal do Livro e o fetichismo: conhecimento ou mercadoria?



Estandes repletos de livros coloridos por dentro e por fora, temáticas variadas. Cerca da metade dos estandes são de cunho infanto-juvenil. Creio que menos de um quarto testificam artigos religiosos e outros, na mesma monta, revista em quadrinhos. Áreas de descanso com bancos estofados pretos e venda de comida aparente que não libera cheiro forte como a imagem faz pensar, para o doce e para o salgado. Se há um cheiro é do perfume das pessoas vestidas em traje casual da classe média-baixa brasileira. Na aparência não vejo predominância do perfil que frequenta o centro de Belo Horizonte, sequer os que vejo no Lurdes. Há uma mistura que mais parece a do popular Shopping Del Rey. Decerto o calor abafado do dia não repercute no imenso galpão, dando o toque de um entardecer de verão que combina com a leveza da roupa e da temperatura do ar. Crianças coerentemente abundam a feira em trajes adultos ou fantasias de princesa e heróis, causa de inveja no público cujos valores não coadunam mais com trajes de linho, colete, lenço, chapéu e pincenê. Sons nevrálgicos de chamadas intermitentes vindas de um além indizível destoam o ambiente passível de literatura, só que não. Se há sons vislumbráveis são de mães atendando aos filhos e vendendores tragando assinaturas de jornal. Há livros, mas não há literatura tal qual enunciaria imortais. Há produtos, há consumo sem tanta relevância diante da ausência quase perene de sacolas a pendularem em braços e antebraços à mostra. Há cores, claro. Estamos num evento lúdico, entremeado por um fauno, artista global de culinária, princesa da franquia estadunidense predileta, contadores de história em retalhos, fantoches e fetiches. Nas faces nada de cenhos fechados. Na fala, nada de saberes oblíquos. Nos corpos nada de prostração nem devaneios, apenas movimentos orientados pela geografia euclidiana do lugar. Não vejo gregos, não vejo poetas mortos, tão pouco poesia. Se há alemães, jazem solitários, sem dedos ou pálpebras, num vago ideal ou, talvez, nos meandros da psique. Vejo mais imagem que letras, mais sons que palavras, mais estampas de imensos olhos puxados do que lendas de uma perna só. Não há palavras, mas há verbetes. A tônica da feira são os dicionários. Na pobreza da semântica nos resta a forma. A forma que enquadra o mundo, outrora caixa, agora tela, léxico da linguagem falada e mostrada. Nas imagens quilométricas da transmissão passivadora, faces distantes do papel. As imagens são mais vivazes que a imaginação. As imagens chamam para os livros. - Olhe! A história que vi no desenho. - Puxa! O fim de uma temporada interrompida. A frieza sedutora dos pixels tenta entoar timidamente algum canto branco e preto para e-leitores cuja praticidade moderna os fazem carregar, sem tomada por trinta horas, todo o conhecimento da humanidade na carteira (desde que acomode 10x15cm, menos de um mindinho e um cartão de crédito com conexão direta com o céu ou com um clique). Mas os tons permanecem cinza e permeiam sadismos autorizados para um gênero que não troca impressões sensoriais por ideias. Sequer reflete se o seco retumbar de um livro que cai ecoaria sabedoria. De sapiens a Homo mercantile. Eis a feira, jus ao renome dado à bienal.




Na busca por indagar sobre o fetiche do livro uma constatação: a pergunta foi indutiva. Me deixei levar pelo olhar crítico e enviesado pela quase ausência de títulos de valia na feira. Julguei o público pela capa. Tremendo mal estar para quem busca alteridade mas só conhece espelhos convexos. Numa tentativa de soslaiar o olhar, sofregamente me agarro num estande vazio de pessoas mas repleto de alemães. Ah! Os alemães. Por que não empalhá-los e amontuá-los num totem? Opa, já existe lugar para isso. Não em uma feira ruidosa, mas numa biblioteca sepulcral. O errado sou eu. Levo um olhar de cágado que não sai da casca.
De que vale o amor às pessoas se não entoado? De que vale o amor aos discursos e cacos caleidoscópicos de vivências se não lhes tomo a base? Essa cola me fez entender que o fetiche é meu e fico pregando nos ombros alheios minhas peças. Quem tem uma prateleira em casa de livros fechados e empilhados, cujo uso é uma reserva de potência com frangalhos de ato? Mau exemplo que desonra o nobre intento de tradutores herméticos e editoras de lucro duvidoso. Não dá pra empilhar sabedoria em uma prateleira. É triste, mas o espírito continua a existir apenas enquanto houver almas. Se atolas a alma de sabedoria sem retorná-la ao espírito não objetivastes a imortalidade frágil dos terráqueos.
Mas a feira. Subsistência no comprar ou no desejar, se o primeiro lhe for furtado. Precificação não é acessibilidade. Muitos livros a 5, 10 e 15 reais não traduzem leitura aprazível para algum nível da consciência. Ao menos nesta tarde nada vi que corroborasse minha esperança, nada de criança carregando ávida uma pilha de livros do seu tamanho. Triste… nada de Ziraldo… nada de José Mauro de Vasconcelos… só gibi. Feira do livro de couchê, da bíblia, do gibi.
Onde se compra se paga. O livro raramente é consumido na hora. É para uso extemporâneo. Mas curiosamente, chamamos de consumido logo quando tomamos o produto ensacolado e o tíquete. Bom não confundir com consumado. É diferente. Consumimos como subsistência, mas consumamos como teleologia que nos une ao zodíaco. Há uma mística em carregar letras grafadas por ancestrais ou, ao menos, antecedentes na ordem peirceana da comunicação. Talvez a mirra, o incenso e o ouro sejam regalos mais existencialmente aprazíveis do que um conto apontado por uma estrela que cai ou um prato de feijão. Quero ver um consumo diferente. O dos olhos, lingua e nariz. O labor, suor e tempo trocado por textos possibilita algum consumo à mente?
O mais relevante, mais saliente, foi a leitura de um cego. Uma máquina de escrever em braile. Falo claro agora. Desejei ser ledor. Desejei enxergar sem olhos um pouco. Desejei ter coragem e parar de me esquivar do medo que não detenho, mas acho de bom tom procurar. Um além do homem nietzschiano que supera  humanidade e humanos e mostra: sou um homem! Bravo! Latão e ferro pesado criam suaves relevos sem furar o papel. Dedos sensíveis, mais que olhos, são potenciados ao máximo. Em uma feira focada no sense data, algo que faz sentido. Uma luta por ler. Aí sim, ler para sobreviver.
Se algo aprendi com o exercício é de que não consegui me desvincilhar da influência pubescente da fastidiosa (e fascinante) descrição que abre O guarani, escrito por José de Alencar. Quem me dera tomar metonímicamente as pessoas por suas obras e entendê-las por seus vestígios sem apreensão direta da carne. Observar dá nisso. Tal qual a metafísica apontada por Marx, onde deveríamos enxergar um objeto plano quadrilátero sustentado por quatro hastes verticais que pressionam, com 15 Newtons cada, a superfície tocada pelas minhas solas; notamos uma mesa. Nenhuma empiria é possível diante da mente sintetizadora. Fracassei no intento “humiano” de descrever por posicionar-me demasiadamente no texto. Não consegui elidir sujeito e objeto. Não consegui ser surdo às palavras em suas mil faces ocultas ante à de dicionário. Não fui à feira. Fui à mim e de lá, sendo ou não possível, não saí.

Dessolilóquio

A gente tem que aprender a ser gente sendo a gente.
Cada vez mais me convenço que sou cada vez menos eu, e cada vez mais nós.
Nós no pronome, no substantivo e no predicado, não no pessoal.
Quem pensa que é ponto se perde no só, somos retas envergadas no gênero.
Sou menos no sujeito, que na espécie, que no gênero.
Se há um sentido para os sentidos, um mundo para objetos, a ordem se torna óbvia demais.
Esquecer é o exercício da razão do eu para cultivar reminiscências do nós.


Espelho

Em face do amor irrefletido,
Me vejo errante convexo
Distorcido amaro amaria Amarante
Desnudo sem prédica, juízo. Pre(-)juízo.

Caminho fim tornado meio
Tempo meio, desacreditado despercebido
Estagnado numa máquina de divididos dividendos
De vidros, fluídos petrificados, olhar pétreo em ponteiros, pontas, aparas.

Alteridade alterada pelos halteres desleixados
Sem peso, massa, gravidade, física, metafísica
Tapetes, moedas, pedras, estrelas, caminhos.
Braços, abraços, retas, arestas, rotas, restos.

Sem outro, sem vista, à vista, sem prazo,
Eu cash. Eu trabalho. Eu mercado, eu mercadoria.
Eu externo no esterno, cerne no centro, certo no senso,
Sentido, sentindo, parado... parando... parado... presente, eu.


Sobre o livro "A tríade do tempo" escrito por Pedro Bial ou similar

Preocupada comigo, alguém muito especial me implorou para ler este livro, visto que supostamente minha vida seria um fracasso rompante. Daí, por uma sagaz ironia de Chronos, interrompi a leitura de "Ser e Tempo" de Heiddeger e do apelidado de "O Capital" de Marx para a leitura deste livro de autoajuda empresarial cujo objetivo é tornar a vida mais produtiva pelo melhor manejo do tempo.

A referida "tríade" é descrita como uma priorização de atividades importantes, relevantes e circunstanciais. Recomenda que você deve intercambiar suas atividades e se organizar para que as importantes e relevantes perfaçam 70-80% do seu dia e as circunstanciais ou urgentes sejam mitigadas.
O sucesso virá uma vez que você consiga se organizar para isso adotando agendas com tarefas hierárquicas ao longo de intervalos de tempo factíveis (mês, semana e dia) alocando esta tarefa em quantidade de horas executáveis e dividindo-as caso sua execução seja inviável em menos de três horas. Você pode adquirir o produto pelo site http://www.neotriad.com/site/ e, inclusive, contratar consultoria.

Se você é um indivíduo de sucesso, provavelmente não se dará ao trabalho de ler este livro que, como todo bom livro de autoajuda, promete fórmulas mágicas para todos os seres humanos viventes e provavelmente os não viventes para que atinjam o sucesso. 

Se você for um fracassado como eu, agora você me deve R$20,00 e não perderá duas ou três horas de sua vida ouvindo (lendo) obviedades. Se você quiser ler, vá diretamente para o capítulo 11, o qual resume toda a ópera escrita no ritmo repetitivo do Silvio Santos.



Agora segue a crítica.

Por detrás de um livro mal escrito, com inúmeras citações desconexas que tentam reduzir autorias de personalidades a uma frase, o que de modo geral é uma ofensa, existe um ensinamento espiritual. Neste livro está bem claro que o homem deve buscar uma conexão com o além numerológico de Demócrito por meio da busca dos seus sonhos, sucesso e controle (do tempo, felicidade e sonhos).



Tudo que eu quiser, o cara lá de cima vai me dar
Me dar toda coragem que puder
E não me faltem forças pra lutar.
Autor irrelevante




A busca pelos sonhos é possivelmente uma das falácias mais perpetuadas em nosso tempo, a qual deveria ter sido superada na época do livro "O mundo como vontade e como representação" de Schopenhauer. A distorção identitária do sujeito com o sonho ocorre com a sua projeção em algo fora de si. Logo, quando o objeto do desejo, o sonho, é atingido, o individuo perde a relação de identidade consigo e recai em um "vazio existencial" (perdoem a entoação de autoajuda, estou contaminado). No pior cenário, quando o indivíduo não obtém o objeto do desejo, incorre numa frustração proporcional a expectativa. 

O segredo para esta enlatada felicidade está na aceitação do presente, em simplesmente ser. Deve-se exercitar a autoaceitação e entender que sua posição existencial se faz mediante relações de parte-todo, de pertencimentos mútuos conforme a percepção ou a atenção sobre si é projetada. Por exemplo, se nos observamos como nosso corpo, logo, neste momento, estamos limitados a esta relação com o corpo, e, neste momento, reduzidos a essa percepção identitária. Se nos percebemos como advogado nos colocamos em um corpo ou conjunto do universo do direito. Desta forma, exercendo uma forma de alteridade consigo as expansões identitárias perfazem a verdadeira busca de um indivíduo.

Se forem ler este livro, por favor desconsiderem a multiplicidade de papéis descrita no texto, como se o indivíduo tivesse que apresentar uma personalidade conforme o ambiente. O indivíduo é um só, apenas muda sua projeção identitária (ontológica). Um indivíduo com múltiplas personalidades notadamente evidentes, possivelmente detém alguma psicopatia.




Pau que nasce torto / Nunca se endireita / Menina que requebra / A mãe pega na cabeça
Aforisma do principal filósofo, pensador e compositor brasileiro entre os séculos XIX e XX, ou seja, da história do Brasil desde que deixou de ser Portugal.

O sucesso é outra falácia que deveria ser superada. Graças a perpetuação do conceito de sucesso vivemos em uma sociedade cada vez mais desigual, cuja cultura liberal é distorcida pela conquista da exploração de mais indivíduos dando-lhes uma carteira de trabalho ao invés da autonomia ou impondo-lhes o peso dos lucros desejosamente mais abusivos que prejudicam as relações harmônicas de troca (quebram a apregoada razão de mercado). 

O "sucesso" neste contexto empresarial, não é apenas êxito. Sucesso é prevalecer sobre os outros indivíduos, destaque. Quem ouve Los Hermanos e gosta já entendeu que a cultura do sucesso é uma grande balela. Este conceito de sucesso é inatingível a priori, pois em quantas projeções um indivíduo puder olhar, em tantas mais verá que não conseguirá prevalecer na grande maioria delas. Um "sucesso" ético é aquele em que não há competição, apenas auto-projeções identitárias que aprimorem a própria auto-percepção sem qualquer relação comparativa com outro indivíduo. Logo, se o indivíduo entender que não precisa de sonhos projetados fora de si, entenderá que não precisa de sucesso fora de si, logo, perdoem a extinção tautológica, estará vivendo o próprio sonho, já sendo um sucesso em cada tempo presente, exatamente por estar fazendo aquilo que deseja no momento que deseja.





 O que é imortal / Não morre no final
Paradoxo tautológico proferido na década de 1990 em protesto à degradação vanguardista da arte ocidental.

A última ilusão defendida no texto é a do controle. Assim como é uma contradição dizer que existe final se existe algo imortal, também o é dizer que algo relativo possa ser controlado. O tempo não é uma aferição de relógio. O tempo é uma dimensão tal qual o espaço e é tomado diferentemente conforme a relação perceptorial do indivíduo. Usando um pouco o linguajar ginasial do livro, o tempo não é o mesmo em atividades lúdicas e em atividades chatas. Ainda, se não é possível, nem desejável, controlar o tempo de si, quem dirá ser possível controlar o tempo do outro. O que ocorre é a construção identitária com a percepção do tempo. Quando o indivíduo atinge identidade com aquilo que está fazendo tende a tornar o "produto" de seu trabalho como parte de si. Os indivíduos se penalizam quando trabalham para outros e não conseguem se identificar no que estão fazendo, logo, este conceito capitalista em reduzir o homem a sua produção tende a tornar patologicamente desejável níveis de produtividade extrínsecos a sua identidade.





No manual pisei
Jaspion

Um livro como este não é capaz de ajudar um indivíduo a construir uma relação identitária melhor consigo. Na verdade o tornará obcecado por controle e fórmulas prontas como agendas e outros recursos tecnológicos. Se você não se identifica com sua atividade possivelmente mudar de emprego será a melhor escolha. Se você não considera possível, aprenda a se enxergar nele. Contrate profissionais como um psicólogo, filósofo clínico ou talvez a empresa deste autor. Uma forma interessante de conhecer o mundo para se autoconhecer é com a leitura de bons livros. Leia "Cem anos de solidão" (ótimo para entender o tempo) ou "Amor nos tempos do cólera" de Gabriel Garcia Marques, leia "Crime e Castigo" de Dostoiévski, leia "Trabalhadores do mar" de Victor Hugo, leia todos os livros e contos de Machado de Assis, leia Clarice Lispector, leia bons autores, que, de modo geral, não estão na lista de livros novos mais vendidos. Desta forma nunca mais desejará ler um livro de autoajuda num intento de achar uma solução mágica fora de si. Nunca conheci um indivíduo que se considere um sucesso genuíno lendo autoajuda voluntariamente.

Perdoem possíveis erros decorrentes da nova ortografia. Este texto não foi revisado.

A falência do conceito de modernidade


A retomada da especialização das tarefas e a decorrente mudança da estruturação do pensamento de cada indivíduo está longe de colocar a humanidade na direção do esclarecimento, dado que o indivíduo especialista delega a outros indivíduos ou instituições o poder sobre si.  Esta delegação tácita, inicia com a formação escolar contemporânea, setorizada e voltada para o mercado, constituindo uma aberração qualquer tentativa de percorrer um caminho universal (o do conhecimento plural). A liberdade ou libertação da natureza adquirida com a autonomia financeira é mitigada quando o indivíduo possui capital, mas não meios de empenhá-lo. Toma-se como liberdade a não imposição de domar cada faceta da natureza (lavrar, coser, caçar, abrigar-se) para a sobrevivência, tornando a atividade especialista viável para consolidar o papel existencial adquirido.  Desta forma, o enriquecimento generalizado toma a liberdade daqueles que precisam de serviços realizados por aqueles que outorgam sua liberdade em não fazê-los em prol da sobrevivência. Ou seja, serviços socialmente inferiores são desempenhados por indivíduos cuja liberdade lhes é furtada. Em última instância, torna-se necessário aos detentores dos meios de produção a progressiva tomada de liberdade, de modo a oferta-la proporcionalmente a quem atinge níveis segmentados de consciência desta mesma liberdade. Neste ínterim, o confundimento dos conceitos de ciência e de tecnologia atendem aos interesses dos detentores dos meios de produção, os quais colocam a revolução técnica como algo novo, dada a aparente autonomia da concepção hegemônica de materialismo em detrimento de conceitos metafísicos para o enaltecimento da vida humana, os quais incluem as ideias de absoluto pregadas por filósofos modernos e religiosos. Esta objetivação da ciência, ou do saber, na forma de técnica, dilui qualquer tentativa de autonomia.


A apropriação da técnica e sua não difusão atende apenas aos interesses da máxima subjetivação da consciência, da ciência, da técnica e do homem: a objetivação no capital.  Nesta vertente, tornou-se necessário romper com o histórico antecessor de meios de produção particularizados, em que o homem médio os controla por exercê-los, sobretudo junto `a terra, e posicionar a especialização da técnica ao suposto nascimento da ciência de causas e efeitos lineares pregada por Descartes e consolidada em um modelo do absoluto por Kant. Nem Descartes, nem Kant, trazem inovação no que tange a evolução tecnológica como saber, dado que a técnica evolui independente da ciência pós século XVII e com diferentes estruturas de pensamento há milênios. Tão pouco há apenas saber consistente no método cartesiano, o qual não é capaz de abrigar a complexidade da realidade que abrange, por criar seu próprio linguajar incapaz de aninhar múltiplas causas e múltiplos efeitos a algo que mais próximo da realidade. O método cartesiano que disseminamos está mais para artifícios do que conciliador de objetivações a conciliar exercícios éticos e práticas conscientes coletivas.

A identificação de uma causa para um efeito, ou quando muito, múltiplas causas para um efeito é a limitação de uma verdade a priori, estabelecida em forma de hipótese, a qual é incapaz de responder acerca de qualquer coisa, a não ser que se envergue a ”verdade” em questão `a perspectiva adotada. Transigir uma conceitualização de verdade é abrigar suas múltiplas possibilidades que tangem a limitação humana em expressá-las. Porém, não é exercer a decomposição simplificadora cartesiana, cuja fragmentação não faz mais que juntar um mosaico de cacos de verdades. Cada perspectiva deve contemplar todos os saberes e verdades em todas as formas de linguagens possíveis, sem o compromisso a priori com elas. Cada verdade, enquanto objetivação (i.e., consensual) da percepção, deve falar por si sem deixar de falar pelas e com outras verdades.

Enquanto for encontrado algum subterfúgio racional para algum homem oprimir, cercear, tirar vantagem de outros homens, sequer poderemos tanger alguma ruptura com qualquer modelo econômico, artístico, técnico e científico. Sem esta ruptura deste Homo considerado como sapiens não haverá modernidade.  A liberdade, autonomia, maioridade, surge quando nenhum homem outorgar tacitamente o poder de qualquer face de si a outrem. No entanto, esta fusão de conceitos no que chamei de ”liberdade” possui o limite na natureza vista como antítese do homem.  A liberdade requer ruptura do conceito de natural e humano. Desta forma, poderemos instituir a ”modernidade” enquanto ”autonomia” pregada por Kant. Mas, por favor, criem uma palavra mais adequada, pois usar ”modernidade”, cuja etimologia não permitiria significar mais do que ”contemporâneo”, para nomear uma era supostamente distinta das antecessoras não passa de uma inadequação propagandística.

Sobre o filme Rashomon, escrito e dirigido por Akira Kurosawa

Antes da fé em deus, há de se sustentar a fé nos homens.

Sendo os homens destituídos de honra, o seguimento de algum código moral ocorre apenas diante da conveniência. A percepção é distorcida para contorcer a realidade e torná-la aprazível ou meramente tragável. Desta forma, a mentira torna-se um caco da verdade refletida, fragmentada em inúmeras versões. Não há redenção se a moral é subjetivada. O determinismo extrínseco da redenção a torna um melindre de conveniências simétricas para o redentor e para o redimido. Kant, ao trazer a existência de deus como um artifício humano, nos deu insumo para aceitar o que há de intragável em tudo que não passa de espelho dado que somos o que percebemos.




Mais um filme obrigatório. Japonesa narrativa que ruma para um brain explode Allan-Poeriano com requintes mexicanos. Jamais esperei que a morte seria tão similarmente cultuada em países separados por um Pacífico nos veios dos fatos cotidianos que traduzem-na com faces do horror ao banal.

Atuações brilhantes, sonoplastia ao estilo do Bergson (ou o contrário :) ), tomadas que mergulham o espectador na densidade da floresta e da história, a qual vale mais pelas versões do que pelos fatos. Muitas vezes uma aquarela traduz melhor a realidade do que a fotografia.

Dirigido por Akira Kurosawa
Com Toshirô Mifune, Masayuki Mori, Machiko Kyô mais
Gênero Drama
País  Japão
Ano 1950
Duração: 1h28min