A falência do conceito de modernidade


A retomada da especialização das tarefas e a decorrente mudança da estruturação do pensamento de cada indivíduo está longe de colocar a humanidade na direção do esclarecimento, dado que o indivíduo especialista delega a outros indivíduos ou instituições o poder sobre si.  Esta delegação tácita, inicia com a formação escolar contemporânea, setorizada e voltada para o mercado, constituindo uma aberração qualquer tentativa de percorrer um caminho universal (o do conhecimento plural). A liberdade ou libertação da natureza adquirida com a autonomia financeira é mitigada quando o indivíduo possui capital, mas não meios de empenhá-lo. Toma-se como liberdade a não imposição de domar cada faceta da natureza (lavrar, coser, caçar, abrigar-se) para a sobrevivência, tornando a atividade especialista viável para consolidar o papel existencial adquirido.  Desta forma, o enriquecimento generalizado toma a liberdade daqueles que precisam de serviços realizados por aqueles que outorgam sua liberdade em não fazê-los em prol da sobrevivência. Ou seja, serviços socialmente inferiores são desempenhados por indivíduos cuja liberdade lhes é furtada. Em última instância, torna-se necessário aos detentores dos meios de produção a progressiva tomada de liberdade, de modo a oferta-la proporcionalmente a quem atinge níveis segmentados de consciência desta mesma liberdade. Neste ínterim, o confundimento dos conceitos de ciência e de tecnologia atendem aos interesses dos detentores dos meios de produção, os quais colocam a revolução técnica como algo novo, dada a aparente autonomia da concepção hegemônica de materialismo em detrimento de conceitos metafísicos para o enaltecimento da vida humana, os quais incluem as ideias de absoluto pregadas por filósofos modernos e religiosos. Esta objetivação da ciência, ou do saber, na forma de técnica, dilui qualquer tentativa de autonomia.


A apropriação da técnica e sua não difusão atende apenas aos interesses da máxima subjetivação da consciência, da ciência, da técnica e do homem: a objetivação no capital.  Nesta vertente, tornou-se necessário romper com o histórico antecessor de meios de produção particularizados, em que o homem médio os controla por exercê-los, sobretudo junto `a terra, e posicionar a especialização da técnica ao suposto nascimento da ciência de causas e efeitos lineares pregada por Descartes e consolidada em um modelo do absoluto por Kant. Nem Descartes, nem Kant, trazem inovação no que tange a evolução tecnológica como saber, dado que a técnica evolui independente da ciência pós século XVII e com diferentes estruturas de pensamento há milênios. Tão pouco há apenas saber consistente no método cartesiano, o qual não é capaz de abrigar a complexidade da realidade que abrange, por criar seu próprio linguajar incapaz de aninhar múltiplas causas e múltiplos efeitos a algo que mais próximo da realidade. O método cartesiano que disseminamos está mais para artifícios do que conciliador de objetivações a conciliar exercícios éticos e práticas conscientes coletivas.

A identificação de uma causa para um efeito, ou quando muito, múltiplas causas para um efeito é a limitação de uma verdade a priori, estabelecida em forma de hipótese, a qual é incapaz de responder acerca de qualquer coisa, a não ser que se envergue a ”verdade” em questão `a perspectiva adotada. Transigir uma conceitualização de verdade é abrigar suas múltiplas possibilidades que tangem a limitação humana em expressá-las. Porém, não é exercer a decomposição simplificadora cartesiana, cuja fragmentação não faz mais que juntar um mosaico de cacos de verdades. Cada perspectiva deve contemplar todos os saberes e verdades em todas as formas de linguagens possíveis, sem o compromisso a priori com elas. Cada verdade, enquanto objetivação (i.e., consensual) da percepção, deve falar por si sem deixar de falar pelas e com outras verdades.

Enquanto for encontrado algum subterfúgio racional para algum homem oprimir, cercear, tirar vantagem de outros homens, sequer poderemos tanger alguma ruptura com qualquer modelo econômico, artístico, técnico e científico. Sem esta ruptura deste Homo considerado como sapiens não haverá modernidade.  A liberdade, autonomia, maioridade, surge quando nenhum homem outorgar tacitamente o poder de qualquer face de si a outrem. No entanto, esta fusão de conceitos no que chamei de ”liberdade” possui o limite na natureza vista como antítese do homem.  A liberdade requer ruptura do conceito de natural e humano. Desta forma, poderemos instituir a ”modernidade” enquanto ”autonomia” pregada por Kant. Mas, por favor, criem uma palavra mais adequada, pois usar ”modernidade”, cuja etimologia não permitiria significar mais do que ”contemporâneo”, para nomear uma era supostamente distinta das antecessoras não passa de uma inadequação propagandística.