Sobre "Sagarana - O burrinho pedrês", João Guimarães Rosa

Um conto entremeado de imagens cujo tempo não permite postá-las linearmente numa película, vislumbrando como filme. Mais que isso, devem ser sobrepostas estáticas como transparências de um retroprojetor. Amalgamadas formam um borrão, cujo matiz espelha esse algo impressionista que força os olhos a enxergar um-não-sei-que de atávico em nossa alma cabocla.

Sim, uma narrativa de marcha sufocante, ultrassônica. Para ser lida no intervalo de tempo da espera que nunca ocorrerá. Numa gélida travessia entre sopros sistólicos de um rio sem margens. Nos instantes que intervalam dois cantos de "pássaros bonzinhos e engraçadinhos que não agouram" mas vencem crinas, chifres, chapéus e o que está abaixo. Deve ser lida entre o soluço e a lágrima de uma alminha preta.

Ironicamente, o nome do nosso ilustre protagonista, Sete-de-ouros, representa contemporaneamente para os descendentes da história a mais fraca manilha de um jogo jocoso, que mente e goza de venturas. Manilha fraca, mas acima das demais cartas por estar desavisada e sabiamente próxima da realeza. Nestes tempos de agora o chamaríamos de pica-fumo sem realizar que retinas outrora marcadas por brejos e bois tem hoje asfalto e automóveis desembestados, tudo vingado nas traquinagens da vida. Vigora ainda os mesmos espíritos movidos a cana e fole, inerências da raça humana.

Não posso negar a poesia sangrando a prosa sertaneja. Atravessando brasis e rezes, atravessando a goles e garrotes, bridas e estribeiras. Esmagando o crânio com cascos flutuantes, trespassando flancos com a compaixão de secos mugidos onde

"as ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estrados de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudades dos campos, querência dos pastos de lá do sertão. (...) Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dansa* dôido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...".

E varando vejo a história de um grande homem, que é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E esse homem grande é um burro!


*transcrito conforme a 17a. ed., Ed. José Olympio

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