Sobre "A morte de Ivan Ilitch", Tolstoi

A idiossincrasia do morrer. Uma vida típica e estereotipada a prostrar-se aos incertos cortejos da dama do negro capuz. Nem Deus, nem o Limbo. Para Ivan a preocupação maior fora a concreta dor e o abstrato desengano.  Uma cratera a abrir-se fantasmagoricamente no mundo real, um assustador confronto entre a vida vivida o a morte premente. Não, o passado é tão postiço quanto o póstumo futuro, afinal "A morte está acabada". Interessante afirmação para um mundo que a vê como algo eterno. Debruçados inconscientemente no tempo ignoramos o quanto convivemos com Ela, pois ingenuamente:  "Ela tem que vir para os outros, não para mim". "Longe de acostumar-se com a ideia, simplesmente não conseguia entende-la". É o que acontece ao desavisado mortal adimensionalmente distante da pericibilidade. Um livro ganho no natal e terminado no meio do ano... e com menos de cem páginas... Denso como o fio da foice...

Odisseia pueril - parte 4


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No meneio do negro véu,
Tua perfeita esfinge, vistosa saliência ruborizada.
Traço fino, lapidação do Eterno morador do céu.
E eu a acabrunhar como peso da tez petrificada.

Ombros soltos, colo em liberdade.
Meu jovem rosto, embalsama sua pele.
Marfim esférico, estacas em meu peito.
Lúdico tocar, impune acaricio.
Magma a suspirar em seu ventre macio.
Estou a ajoelhar, aos teus pés reverencio.
Seus braços meu colar, com a ponta dos dedos brinco.
As mãos minha coroa, seu dorso ébrio delírio.
Pernas desenganadas, pulsação uníssona.
Seu turquesa olhar meus favos queimando.
Estremecimento, baluarte ao luar.
Nenúfares brotando, vaga-lumes a cintilar,
Estrelas despencando, idílio alumiado.
Eclosão dos sentidos, supernovas explodindo!

És meu delírio, ébrio devaneio.
Em leito onírico, prostro meus desejos.
Do vazio deste chão brotam folhas amassadas.
Canetas quebradas, veias escorrendo.
Tênue claridade, obscuros presságios.
Diáfana luz, livros na cabeceira... desperto!

Minha alma estremece, dor solitária.
Não estás ao meu lado.
O braço estendido espera seu impossível abraço.
Minhas ovelhas fogem como crianças mimadas.
Mais uma aurora a despontar sem laço...


LABOR, LANGOR

Escadas infinitamente subo,
papéis atolam-me entre relatórios e carimbos.
Súbito em Praga, invisíveis burocracias sugo.
Num julgamento imorredouro, prisão no limbo.

Na tela fria do computador
Seu reflexo surge numa sombra.
O tráfego sanguíneo dispara em bits meu labor.
Entorpecendo recursivamente minha obra.

A esfera azul lenta circula,
Meus relógios derretendo sem o tempo.
Quebrada engrenagem imacula.
Oh! nefasto Chronos, da amada me afastando.

O telefone cacareja, chega outro cliente.
Pois não? Um momento, por favor...
Posso ajudá-lo? (Podes me ajudar?)
Em um instante (Espera eternamente!)

No ponto os alheios de espírito fatigado.
Olhos pregados, alongada espera.
-É ele! Não, estou enganado...
Finalmente vem o ruidoso monstro, retorno à quimera.

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A clínica: elocubrações

Poderão modelos computacionais superar àqueles formados no cérebro de um clinicante experiente?

A clínica advém da observação fomentada pelo ensino. O olhar clínico possui uma condução, é dirigido. Assim, o conhecimento teórico dispensado torna-se prático ao implementa-lo fora dos modelos inerentemente limitados por serem retratos da realidade, e não ela própria. O sedutor poder da clínica perpassa pelo poder dos modelos. Tratamentos de viés epidemiológico pretendem ofertar a cura a partir da universalização, do abrangente. Tratamentos empíricos, a partir do específico, constroem modelos amorfos em sua complexidade ensimesmada que tende ao infinito no universo do clinicante. Evidentemente não se pode prever com p=1,0 o resultado de um de um tratamento. A grande busca, portanto, tornou-se criar modelos aplicáveis que assegurem algo o mais próximo do 1,0 ideal. Formar modelos em clinicantes pode levar décadas até que seus índices de diagnósticos e prognósticos sejam satisfatórios, sobretudo no tratamento farmacológico, onde a incidência de erros é significativa. Porém, por mais sofisticado que um modelo computacional se apresente, superará modelos empíricos humanos? Ou ainda, mediante as variáveis adotadas e suas limitações em processa-las, os modelos computacionais apenas serão complementos, ferramentas para os modelos empíricos humanos? A clínica vai além do diagnóstico. Não é desejável a alta na clínica, não se trata de um caso, mas da existência, do tratamento e das causas e, destarte, da prevenção da reincidência. Clinicar é observar e criar modelos recursivamente. É o que temos de mais avançado até o momento, já que tudo ainda depende do fator humano do clinicante.

Sobre "A Utopia", Thomas Morus

Concordo. Como não admirar tal clarividência excelsa? Discordara ser impossível sua implementação, embora a obra termine com um "aspiro, mas não espero sua concretização". Há escravidão neste sistema, algo que o homem contemporâneo não pode atinar. Mas esta escravidão é ainda melhor que o cárcere ocidental. Todos são impelidos ao endividamento supérfluo e trabalham insanamente dezenas de horas semanais para assegurar cadastros e burocracias Kafkanianas. Seria isso liberdade? Evidentemente não precisamos consumir para ser felizes... balela?

Deve-se lidar com o espírito das pessoas, acalma-las e elevá-las se possível. Essa escravidão se assemelha a prisão perpétua sob trabalhos forçados. Ora, a divisão dos bens foi intento dos soviéticos. O colapso deu-se após décadas com a mácula perpetrada pelos privilégios que deveriam inexistir. Quando lida-se com a natureza humana deve-se entender que há orgulhosos a desejarem sobrepujar. Deve-se trabalhar a humildade nos espíritos. Quando nada lhes faltar o equilíbrio será a prédica eterna.

Sobre "Religião nos limites da simples razão", Immnuel Kant

Deu para sentir o que é Kant com esta primeira leitura deste autor divisor de águas. Esquadrinhando os pormenores da religião se permite fazer uma abordagem sob o ponto de vista da razão prática sem esquecer da razão pura. Me tocou pois eu sempre busquei o significado da virtude. Acreditara que a ação é inválida sem sólidas intenções morais. Tomada nos seus limites, a religião verdadeira está longe de rituais e líderes espirituais os quais não podem ditar regras se não estiverem diretamente sob inspiração divina. Neste caso destitui-se a legitimidade de suas palavras.

Um livro contextualizado embora seja focado no cristianismo. Contudo, tais pensamentos podem vigorar sobre seu pai e irmão também monoteístas. Numa época de fortes clamores religiosos e grandes oscilações de fiéis nos cabe refletir onde Deus quer chegar, isso se já não O matamos.

Sobre "Apologia a Sócrates", Platão

Um grande homem frente à morte mostra seu tamanho. Àquele que conhece o que ignora torna-se o maior conhecedor. Sempre saltaremos de caverna em caverna e fugiremos da verdade imanentemente aterradora!
É tão assustador sair da zona de conforto e deparar-se com a bala de canhão a defrontar a fortaleza do conhecimento erigido em nome da deusa Sofia... Quanta presunção! A construção do conhecimento passa pela arrogância da tramagem de conceitos? Por mais que provemos algo sempre ficaremos no a priori. Nos apetecem leis, teoremas, postulados... Alcunhamos-lhes com nossos próprios nomes e nos imortalizamos por isso. Até mesmo números e vidrarias tem nome de gente, como Avogrado, Plank, Elermeyer, Kitassato, Nesler, Paster...

Paradoxalmente tudo que Sócrates deixou foi a deseducação em buscar acúmulos de bens imateriais, parecido com um profeta que viria quatrocentos anos depois, não? Ambos sem deixar nada escrito revolucionaram a forma de pensamento do mundo ocidental... ambos morreram inocentes por serem talentosos nos discursos e jogos de ideias... por trazer cada qual ao seu modo a luz interior dos cidadão comuns... por não acumularem bens materiais e viverem apenas com o que necessitavam... por pregar a lógica contrária que tanto divide a sociedade e torna os homens desiguais... por implicantemente insistirem com seu religare com Deus... Será que os apóstolos sabiam a história de Sócrates ao escreverem os evangelhos? Eu prefiro não questionar suas existências para manter minha fé nesses dois gigantes e incendiários do pensamento.

Sobre "Um esboço para teoria da emoções", Jean-Paul Sartre

Ao narrar a incomensurabilidade de estudar a essência em paralelo aos fatos evidencia o quão impossibilitada a psicologia se tornou ao destituir a natureza humana da significação da emoção enquanto fenômeno. E não adianta explicar mecanisticamente as emoções como meros frutos de causas e efeitos de luta ou fuga, meros mecanismos reflexos destinados a um fim.

Será a consciência uma forma de enfraquecer barreiras que separam as camadas profundas da superfície do eu? Torna-se um problema quando a consciência não estabelece sua própria significação do que a constitui. Sendo assim, na medida que se faz, termina por ser o que parece a si mesma.

A emoção legítma é acompanhada da crença. Assim, a origem da emoção é uma degradação espontânea da consciência diante do mundo.

Sobre "Assassinatos na rua Morgue e outras histórias", Edgar Allan Poe

Ao comprar esse livro fiz a aquisição da paixão do livreiro pelo autor. Porém, como toda paixão comprada, esta logo se dissolveu com a primeira leitura mais aguçada do objeto de sentimento alvitrado. Talvez em parte devido ao meu preconceito com autores americanos.

Não posso destituir o mérito da criatividade em tornar o fantástico palpável aos olhos ávidos por desfechos não usuais, embora potencialmente previsíveis. Porém, dada a força das histórias não é passível de perdão o não aprofundamento dos ambientes e personagens. É um pecado com histórias tão instigantes.
Contudo, não posso negar que a história principal em muito lembrou nosso ilustre Conan Doyle, trazendo-me boas lembranças das tardes impúberes em que dedicava-me a concorrer com Sherlock Holmes e Hercule Poirot.

O estilo investigativo é perfeito quando composto no idioma bretão. Pode ser taxativo afirmar, mas a forma sintética do inglês o torna ideal para quando se pretende realizar afirmações claras, sem ambiguidade, como em textos científicos. Já os idiomas latinos ofertam maiores possibilidades a velha efusão lírica. Mas quem sou eu para falar de linguística, hermenêutica, semântica ou seja lá o que for.

Mesmo com as creditadas por mim falhas de estilo, certamente por motivos nostálgicos, voltarei a ler aquele alcunhado como inspirador dos romances policiais do século XIX.
Será que descobri a origem do meu gosto pelo seriado Law & Order?