Enclausurada verdade científica

A reflexão não é um galardão do apregoado pioneirismo grego em sistematizar uma nova forma de pensamento. Tão pouco foi este o primeiro “povo filósofo”, visto que 1000 a.C. os indianos já possuíam metafísica fundamentada, sabedoria, moral e ascética. Na verdade, muitas das conclusões obtidas pelos filósofos ocidentais foram uma “transmigração” de conceitos orientais sob a óptica metodológica do pensamento introduzido pelos gregos. A forma de buscar a verdade arraigou-se profundamente na concepção do homem ocidental. As ciências naturais e correntes de pensamento modernas, como o materialismo, surgiram totalmente impregnadas desta forma de pensar. O padrão, o estereótipo, foi lançado, muito se conseguiu com este modelo, mas hoje sabe-se que mesmo verdades antagônicas podem ser válidas. Tanto Newton, quanto Einstein estão certos, tal julgamento está correlacionado ao ponto de vista em que se observa.

Talvez o maior diferencial introduzido pelo pensamento grego seja a dissociação do mundo divino do mundo natural. Conforme preconizara Vernant, Zeus não governava o mundo, mas a lei (nómos). Buscar o princípio passa a ser uma premissa primordial da ciência, e a partir dele encontra-se a lei universalizante. Seguindo esse distanciamento do divino, os pensadores gregos buscaram a essência das coisas empregando elementos do mundo natural (phýsis), assim, segundo Tales a água é a substância originadora; para Anaxímenes, o ar. No entanto, a busca da verdade pelo que é puramente concebido na mente, o intelectivo, foi adquirindo aspecto superior. Anaximandro introduziu a existência de um elemento primordial formador do mundo, o indeterminado (apeíron), infinito e em movimento perpétuo. Esta visão de abstração máxima foi ganhando notoriedade, sendo a matemática quem possivelmente incorporou esta faceta com mais veemência, sobretudo com os Pitagóricos, extremando tal conhecimento acreditavam que a essência da realidade é o número. Alcançar a verdade não consistiu mais em ver com os falhos olhos físicos, mas ver além, com os olhos da mente.

A configuração do que seja racional pode ser ilustrada pelo comportamento dos romanos, onde tudo que não adivinha deste mundo greco-romano era tido como “bárbaro”. Ou seja, a medida que vamos nos distanciando dos padrões elaborados por esta forma de conhecimento estamos caminhando para o irracional. Todo conhecimento deve ser elaborado em determinados padrões explicativos (como esta dissertação, p.ex.) com ideias encadeadas e coerentes, sendo as outras formas de transmissão (narrações, poesias, etc) apenas distrações sem maiores vocações.

A procura pelas características que sejam inerentes a cada objeto, sendo a base das atuais especialidades científicas, pode ser considerada fruto da vitória do pensamento de Platão sobre os sofistas. No diálogo de Sócrates com Teodoro, em Teeteto, há o embate com o sofista Protágoras. Sócrates discordara veementemente de que “o homem é a medida de todas as coisas”, atribuindo que não haveria, assim, verdade, já que cada indivíduo faria da sua opinião a própria verdade. A visão arquetípica de Platão, afirma, num plano metafísico, a existência de uma verdade essencial dos objetos. Tudo que vemos são reverberações deste ideal, e a postura da busca do conhecimento diferencia os indivíduos que jazem nas trevas daqueles que saem de sua realidade ignorante para buscar o que já existe no profundo de sua alma, a verdade universal e imanente. Tal busca da verdade teve seus primórdios calcados neste pensamento da existência de uma verdade absoluta, e quanto mais sábio o indivíduo for se tornando em determinado assunto, mas próximo da verdade se encontra e sua opinião será superior a dos demais considerados leigos.

O ideal grego produziu os primórdios desta ciência de causa e efeito, de ato e consequência, ação e reação. De fato, após os três pilares da filosofia, Sócrates, Platão e Aristóteles, este pensamento foi pouco modificado até o século XVIII. Talvez se eles estivessem vivos atualmente condenariam a interpretação que foi repercutida de suas ideias. Tomar-se o mundo natural como existência una restringiu uma série de novos conhecimentos sobre a natureza e sobre o homem. A revolução industrial foi o ápice de uma visão mecanicista e a ciência não se permitiu por muito tempo deixar de ver, p.ex., a célula como sendo uma micro-fábrica, funcionando como um relógio. Nem o ser humano é tão universal assim, pelo contrário, a reprodutibilidade de muitas experiências com substâncias em humanos foi relativizada com a estatística (que salvou o modelo mecanicista de uma brutal derrocada). Se estivéssemos apenas no pensamento naturalista clássico não poderíamos acertar as órbitas de nossos satélites com exatidão e nem saber a posição correta das estrelas. O mundo da psique possivelmente não seria descortinado.

Ainda estamos submergidos culturalmente pela metodologia do pensamento grego. Mesmo querendo discutir sobre a entropia dos modelos fisiológicos, mesmo buscando abstrações, dificilmente conseguimos estudar um objeto sem optar por reduzi-lo a duas ou três variáveis. A ciência determinista é como uma escada. Cada degrau é acumulativo, assim pode-se seguramente subir por ela em direção a verdade que ela proporciona. Tal imagem é cômoda e nos dá a segurança de apontar uma tendência. Porém, sinceramente, eu gostaria que o conhecimento fosse entendido como esferas que se interpõe e o caminho tornaria-se livre, afinal a própria ciência estaria fadada a estagnar-se se não procurasse este caminho. Hoje timidamente tenta-se corrigir este erro com a multidisciplinaridade e com disciplinas como antropologia e filosofia constituintes de cursos na área de exatas e biológicas. É um começo.

Texto de 2006

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